Resumo: Este artigo explora as complexas dinâmicas entre a proteção da propriedade intelectual e seus impactos sociais, econômicos e tecnológicos. A análise é centrada na evolução histórica da propriedade intelectual dentro do contexto do liberalismo, revelando como, embora inicialmente concebida para incentivar a inovação, essa proteção pode se transformar em um mecanismo de controle que perpetua desigualdades, especialmente em um cenário global. O texto aborda também a tensão entre os direitos autorais e o acesso ao conhecimento, examinando como o sistema atual, apesar de suas intenções, pode restringir o progresso tecnológico e cultural, particularmente em países em desenvolvimento como o Brasil. O artigo conclui com uma reflexão sobre a necessidade de reformar o sistema de propriedade intelectual para equilibrar a proteção dos criadores com a democratização do acesso ao conhecimento.
Palavras-chave: propriedade intelectual; direitos autorais; inovação; liberalismo; controle geopolítico.
Resumen: Este artículo explora las complejas dinámicas entre la protección de la propiedad intelectual y sus impactos sociales, económicos y tecnológicos. El análisis se centra en la evolución histórica de la propiedad intelectual dentro del contexto del liberalismo, revelando cómo, aunque inicialmente concebida para incentivar la innovación, esta protección puede transformarse en un mecanismo de control que perpetúa desigualdades, especialmente en un escenario global. El texto también aborda la tensión entre los derechos de autor y el acceso al conocimiento, examinando cómo el sistema actual, a pesar de sus intenciones, puede restringir el progreso tecnológico y cultural, particularmente en países en desarrollo como Brasil. El artículo concluye con una reflexión sobre la necesidad de reformar el sistema de propiedad intelectual para equilibrar la protección de los creadores con la democratización del acceso al conocimiento..
Palabras clave: propiedad intelectual; derechos de autor; innovación; liberalismo; control geopolítico.
Abstract: This article explores the complex dynamics between the protection of intellectual property and its social, economic, and technological impacts. The analysis focuses on the historical evolution of intellectual property within the context of liberalism, revealing how, although initially conceived to encourage innovation, this protection can transform into a mechanism of control that perpetuates inequalities, particularly on a global scale. The text also addresses the tension between copyright and access to knowledge, examining how the current system, despite its intentions, may restrict technological and cultural progress, especially in developing countries like Brazil. The article concludes with a reflection on the need to reform the intellectual property system to balance the protection of creators with the democratization of access to knowledge.
Keywords: Intellectual Property; Copyright; Innovation; Liberalism; Geopolitical Control.
1.INTRODUÇÃO
A propriedade intelectual, ao criar direitos exclusivos sobre criações, contraria a natureza colaborativa e expansiva do conhecimento, que, por definição, prospera na troca e na construção coletiva. O filósofo Michel Foucault argumenta que a "originalidade" e o "autor" são construções culturais destinadas a legitimar a propriedade intelectual, transformando ideias em mercadorias (Foucault, 1992). Em contraste, Yochai Benkler, em sua obra sobre a economia da informação, destaca que o conhecimento é um bem público, devendo ser amplamente compartilhado para maximizar seu impacto social (Benkler, 2006).
O sistema de direitos autorais, ao mercantilizar o conhecimento, pode restringir o acesso e, potencialmente, retardar o progresso social e tecnológico. Lawrence Lessig observa que a proteção excessiva pode sufocar a inovação e a disseminação do conhecimento (Lessig, 2004). Jeremy Rifkin também critica o regime de propriedade intelectual, argumentando que, em um mundo digital e globalizado, a proteção exagerada dos direitos intelectuais pode aumentar as desigualdades, favorecendo aqueles que já detêm poder econômico, enquanto marginaliza os menos privilegiados, que dependem do acesso aberto para inovar (Rifkin, 2000).
À medida que consideramos as implicações da propriedade intelectual para a justiça social e o desenvolvimento global, a discussão sobre seus limites se intensifica. Estudos de Amartya Sen e Joseph Stiglitz sugerem que, quando mal calibradas, as políticas de propriedade intelectual podem exacerbar as desigualdades globais, privando os países em desenvolvimento do acesso ao conhecimento essencial para seu progresso (Sen, 1999; Stiglitz, 2007).
Assim, o dilema central reside em como equilibrar a necessidade de incentivar a criação por meio da proteção de direitos, sem comprometer a natureza inerentemente compartilhada e colaborativa do conhecimento, que é vital para o avanço da humanidade. Esse equilíbrio é o cerne das discussões contemporâneas sobre os limites e o papel da propriedade intelectual em um mundo cada vez mais interconectado e digital.
Neste artigo, adota-se uma abordagem interdisciplinar, combinando análises históricas, jurídicas e literárias para explorar as complexas dinâmicas entre a proteção da propriedade intelectual e seus impactos sociais, econômicos e culturais. Para fundamentar a análise das tensões entre propriedade intelectual, inovação e controle cultural, este artigo se baseia no referencial teórico de Walter Benjamin, especialmente em sua obra "A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica". Benjamin argumenta que a reprodução técnica das obras de arte não apenas transforma a natureza dessas obras, mas também democratiza o acesso à cultura, desafiando a noção de originalidade como um valor intrínseco. Ao explorar como a propriedade intelectual pode atuar como um mecanismo de controle que perpetua desigualdades, este artigo dialoga com a perspectiva de Benjamin, que vê a perda da "aura" da obra de arte na modernidade como um sintoma da mercantilização da cultura. Assim, o referencial de Benjamin permite uma crítica mais profunda da propriedade intelectual, evidenciando como ela pode restringir o acesso ao conhecimento e à inovação, em vez de promovê-los, especialmente em contextos onde o controle sobre a cultura se torna uma ferramenta de dominação econômica e política.
A metodologia empregada combina análise documental e revisão bibliográfica para contextualizar historicamente o desenvolvimento das leis de direitos autorais e examinar suas implicações práticas no contexto brasileiro e global, com foco particular no impacto dessas leis sobre a equidade no acesso ao conhecimento.
A seção “O Nascimento da Propriedade Intelectual” explora as origens históricas da propriedade intelectual, destacando sua evolução como um meio de incentivar a inovação, mas também como um mecanismo de controle que cria monopólios e restringe a disseminação de ideias. Em “Geopolítica dos Direitos Autorais”, discutimos como os direitos autorais têm sido utilizados como uma ferramenta de controle geopolítico, perpetuando desigualdades entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento por meio de acordos internacionais e políticas que favorecem interesses econômicos hegemônicos. Em “O Paradoxo da Pirataria”, analisamos a pirataria como uma resposta às barreiras impostas pela propriedade intelectual, mostrando como, em muitos casos, a pirataria pode impulsionar a inovação e a difusão tecnológica, desafiando as estruturas de controle estabelecidas. Em “A Pirataria e o Direito ao Conhecimento”, abordamos o papel da pirataria na democratização do conhecimento em contextos de desigualdade, especialmente em países em desenvolvimento, onde o acesso a tecnologias e recursos é limitado pelas leis de propriedade intelectual. Em “O Mito da Originalidade”, criticamos a noção de originalidade absoluta, argumentando que toda produção cultural é inerentemente intertextual e dependente de contextos históricos e sociais, o que desafia as rígidas proteções oferecidas pelo sistema de propriedade intelectual. Por fim, em “Direitos Autorais e Soberania”, examinamos os desafios que o Brasil enfrenta ao tentar proteger sua propriedade intelectual e cultura nacional frente à pressão global para adotar normas que beneficiam grandes corporações e nações desenvolvidas.
O objetivo deste artigo é delinear a evolução histórica da propriedade intelectual, com ênfase em seu desenvolvimento no contexto das teorias liberais, e examinar suas implicações jurídicas. A propriedade intelectual, como conceito moderno, surgiu durante o Iluminismo, quando as ideias de liberdade individual e direitos naturais começaram a influenciar a legislação. Paradoxalmente, essas ideias liberais, que promovem a livre circulação de bens e conhecimento, acabaram por justificar a criação de barreiras jurídicas para proteger a inovação individual.
A análise histórica evidenciará que, embora a propriedade intelectual tenha sido inicialmente concebida como um incentivo à inovação, ela rapidamente se transformou em um mecanismo de controle que, em muitos casos, contraria os próprios princípios liberais. Por exemplo, enquanto o liberalismo clássico defende mercados abertos e competitivos, a propriedade intelectual frequentemente estabelece monopólios temporários que limitam o acesso ao conhecimento. O artigo também abordará como diferentes correntes do pensamento liberal — como o utilitarismo e o libertarianismo — justificaram a existência desses direitos, ao mesmo tempo em que enfrentaram críticas ao longo do tempo.
Ademais, investigaremos as implicações jurídicas da propriedade intelectual no contexto da globalização, onde as leis nacionais de copyright e patentes muitas vezes entram em conflito com a natureza internacional da produção e distribuição de conhecimento. Isso inclui uma análise de como acordos internacionais, como o Acordo TRIPS da OMC, buscam harmonizar essas leis, frequentemente beneficiando as nações desenvolvidas em detrimento das nações em desenvolvimento. Por fim, ofereceremos uma visão crítica e abrangente sobre a evolução da propriedade intelectual como um conceito jurídico dentro do liberalismo, discutindo suas consequências práticas no cenário global contemporâneo. Através dessa análise, espera-se contribuir para um entendimento mais preciso das tensões inerentes ao sistema de propriedade intelectual e seu impacto no desenvolvimento global.
2.O Nascimento da Propriedade Intelectual: Impactos e Contradições no Liberalismo Clássico
A propriedade intelectual tem suas raízes no final do século XVII e início do XVIII, período marcado pelo Iluminismo e pela ascensão do liberalismo clássico. Durante essa época, invenções e criações começaram a ser vistas como atividades dignas de reconhecimento e proteção legal, com o objetivo de incentivar a inovação. Essa proteção concedia aos criadores direitos exclusivos sobre suas obras por um período limitado, estabelecendo um equilíbrio entre o incentivo à inovação e o interesse público.
No entanto, essa introdução da propriedade intelectual gerou tensões com os princípios liberais de livre mercado e livre circulação de ideias. O liberalismo, que valoriza a operação sem restrições do mercado e a disseminação irrestrita do conhecimento, entrou em conflito com a ideia de monopolizar temporariamente informações e invenções. A justificação utilitarista da propriedade intelectual argumenta que, embora a proteção temporária possa restringir o acesso, ela é necessária para estimular a criação de novos bens e serviços que, em última análise, beneficiarão a sociedade como um todo.
A evolução desse conceito reflete os esforços das sociedades em equilibrar esses valores conflitantes. A implementação de leis de direitos autorais e patentes variou amplamente entre diferentes países, ilustrando diferentes interpretações do liberalismo. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Constituição de 1787 incluiu uma cláusula que permitia ao Congresso promover "o progresso da ciência e das artes úteis" concedendo direitos exclusivos aos autores e inventores, exemplificando a tentativa de harmonizar a inovação com o interesse público.
Com o tempo, a expansão das proteções de propriedade intelectual, tanto em escopo quanto em duração, agravou a tensão com os princípios liberais fundamentais. Originalmente concebidas para equilibrar o incentivo à inovação com o interesse público, essas proteções acabaram criando monopólios duradouros. Críticos como Jeremy Bentham, John Stuart Mill, e Thomas Babington Macaulay alertaram que prolongar os direitos exclusivos poderia restringir a concorrência, concentrar poder econômico e, mais gravemente, limitar o acesso ao conhecimento—um bem que deveria ser amplamente compartilhado para o progresso social e econômico.
Esses pensadores destacaram a tensão inerente na propriedade intelectual: enquanto visa proteger os criadores e incentivar a inovação, ela também pode atuar como uma barreira ao acesso ao conhecimento e ao progresso societal. Mill, em sua obra On Liberty (1859), defendeu que a liberdade de expressão e o acesso irrestrito à informação são pilares para uma sociedade livre e próspera (Mill, 2000). Ele alertou que a monopolização do conhecimento poderia criar uma elite econômica que controlaria o fluxo de informações, em vez de permitir que todos tivessem acesso igualitário ao conhecimento necessário para a inovação e o crescimento econômico. Macaulay, por sua vez, se opôs à extensão dos direitos autorais, argumentando que o prolongamento desnecessário desses direitos restringiria a circulação de ideias, limitando a educação e o progresso científico (Macaulay, 1843). Ambos acreditavam que, ao proteger excessivamente as criações, a sociedade estaria sufocando novas ideias e inovações que poderiam surgir do acesso livre a esses conhecimentos.
De acordo com as ideias liberais clássicas, o conhecimento é um bem público que deve estar disponível para todos, pois sua disseminação beneficia o coletivo. Sob essa ótica, a monopolização do conhecimento, por meio de direitos autorais e patentes, impõe barreiras que impedem outros de aprender, usar e construir sobre esse conhecimento, representando uma restrição injustificada à liberdade individual.
Críticos liberais também apontam que a propriedade intelectual pode criar desequilíbrios de poder, onde grandes corporações ou indivíduos com recursos suficientes para proteger seus direitos dominam setores inteiros da economia e cultura. Isso pode levar a uma concentração de poder e riqueza, contrária aos ideais de igualdade de oportunidades e concorrência justa, ambos pilares do liberalismo.
Essas críticas destacam a tensão entre o incentivo à inovação, proporcionado pela proteção dos direitos de propriedade intelectual, e o potencial de estagnação que pode ocorrer quando o conhecimento é fechado. Em vez de promover a inovação contínua, a propriedade intelectual pode criar obstáculos que inibem novas criações, especialmente em contextos onde a inovação depende do acesso livre a conhecimentos prévios.
Por fim, teóricos liberais sugeriram que o sistema de propriedade intelectual poderia ser equilibrado por meio de limitações e exceções, como o domínio público e as regras de uso justo, que permitem a circulação de conhecimento sem violar os direitos dos criadores. Essa abordagem visa encontrar um equilíbrio entre o incentivo à inovação e a necessidade de manter o conhecimento acessível para a sociedade em geral. John Locke, John Stuart Mill e Friedrich Hayek foram influentes na formação dessas ideias, cada um a seu modo, sugerindo que o sistema de propriedade intelectual deve incluir mecanismos de equilíbrio, como o domínio público e o uso justo.
Além disso, alguns liberais propuseram sistemas alternativos de incentivo, como prêmios governamentais ou patrocínios, que poderiam substituir ou complementar os direitos de propriedade intelectual. Thomas Jefferson, Joseph Stiglitz e William Nordhaus são exemplos de pensadores que sugeriram que tais sistemas poderiam incentivar a inovação enquanto mantêm o conhecimento acessível à sociedade, evitando os problemas de monopólios de longo prazo.
Outro aspecto central ao debate sobre a propriedade intelectual é a noção de "bem público" na economia. Segundo o economista Paul Samuelson, em seu artigo clássico The Pure Theory of Public Expenditure (1954), um bem público é algo não-excludente e não-rival, o que significa que todos podem usufruir dele sem que o consumo por uma pessoa reduza a disponibilidade para os outros. O conhecimento é frequentemente citado como um exemplo de bem público, já que, uma vez criado, pode ser disseminado e utilizado por todos. No entanto, a natureza dos bens públicos cria desafios econômicos, como a "tragédia dos comuns", um conceito popularizado por Garrett Hardin em seu artigo de 1968. Nesse cenário, o uso indiscriminado e a ausência de incentivo para a manutenção ou criação de novos conhecimentos resultam na subprodução, já que todos se beneficiam sem contribuir para os custos.
A propriedade intelectual surge, então, como uma solução para essa problemática, estabelecendo um equilíbrio entre a disponibilização do conhecimento e os incentivos para sua criação. Garantindo aos criadores retornos financeiros sobre suas inovações, a propriedade intelectual assegura que o conhecimento continue a ser produzido e compartilhado, evitando a estagnação que ocorreria na ausência de proteção.
Entretanto, a crítica liberal clássica, representada por pensadores como John Locke, John Stuart Mill e Friedrich Hayek, enfatiza que essa proteção deve ser limitada para preservar o acesso ao conhecimento. John Locke, em seu "Second Treatise of Government" (1689), sugere que a apropriação privada deve respeitar o princípio de "deixar o suficiente e tão bom para os outros", uma ideia que pode ser aplicada ao conceito moderno de domínio público (Locke, 1994). John Stuart Mill, em "On Liberty" (1859), argumenta que a liberdade de expressão e o livre intercâmbio de ideias são cruciais para o progresso social e, portanto, defende a necessidade de equilibrar a proteção dos direitos de propriedade intelectual com o acesso público ao conhecimento, o que está alinhado com as ideias de "uso justo" e domínio público (Mill, 2000). Friedrich Hayek, em "The Constitution of Liberty" (1960), acrescenta que a liberdade de informação e a circulação de conhecimento são essenciais para evitar a concentração de poder e fomentar a inovação. (Hayek, 1990).
Esses teóricos liberais contribuíram para a ideia de que o sistema de propriedade intelectual deve ser equilibrado por meio de limitações, como o domínio público e o uso justo, garantindo que o conhecimento permaneça acessível à sociedade e continue a estimular a inovação.
Além dessas limitações, pensadores liberais também propuseram sistemas alternativos de incentivo para promover a inovação sem criar monopólios de longo prazo sobre o conhecimento. Thomas Jefferson expressou suas opiniões céticas sobre o sistema de patentes em várias correspondências no final do século XVIII e início do século XIX. Em uma carta a James Madison em 1789, Jefferson sugeriu que as "monopolias" poderiam ser permitidas para invenções e produções literárias, mas por um período limitado e somente se beneficiassem a sociedade. Posteriormente, em uma correspondência de 1814 a Oliver Evans, Jefferson destacou que, embora as patentes fossem uma maneira de incentivar a inovação, elas também poderiam restringir o uso de ideias ao monopolizar certas combinações de invenções que, segundo ele, deveriam ser de livre uso. Ele propôs que, em vez de patentes prolongadas, outras formas de incentivo, como prêmios ou recompensas, poderiam ser mais apropriadas para estimular a inovação, ao mesmo tempo em que mantinham o conhecimento amplamente acessível. Joseph Stiglitz, em Making Globalization Work (2006), defende que prêmios governamentais e o financiamento público podem ser eficazes para incentivar a criação de novos conhecimentos, especialmente em áreas como medicamentos, sem os efeitos negativos dos monopólios prolongados (Stiglitz, 2002). William Nordhaus, por sua vez, em suas pesquisas sobre o impacto das patentes no progresso tecnológico, sugere que prêmios governamentais e outros incentivos financeiros poderiam complementar ou até substituir as patentes, proporcionando um ambiente mais justo para a inovação (Nordhaus, 1969).
Esse debate sobre a propriedade intelectual evidencia como as suas origens e evoluções estão profundamente enraizadas em tensões entre os princípios do liberalismo e as necessidades de incentivo à inovação. Enquanto a proteção temporária de criações intelectuais se apresenta como uma solução para garantir que novos conhecimentos e tecnologias continuem a ser desenvolvidos, ela também levanta preocupações sobre a monopolização do conhecimento e a potencial restrição ao livre acesso às informações. Essas preocupações não apenas refletem a necessidade de encontrar um equilíbrio entre o incentivo à inovação e o interesse público, mas também destacam como a propriedade intelectual pode se tornar uma ferramenta de controle, influenciando não apenas a economia, mas também o equilíbrio de poder em um contexto global. Essa questão é central quando consideramos os direitos autorais como uma ferramenta de controle geopolítico, tema que abordaremos a seguir.
3.Geopolítica dos Direitos Autorais: Controle Cultural e Subordinação Econômica
A evolução dos direitos autorais está intrinsecamente ligada à história do poder econômico e político, refletindo as transformações sociais e tecnológicas que moldaram o mundo moderno. Originalmente, os direitos autorais surgiram como uma forma de controle estatal sobre a produção e disseminação de informação, sendo utilizados pelas monarquias europeias para censurar e regular a publicação de livros. A introdução do Estatuto de Anne, em 1710, na Inglaterra, marcou um ponto de virada, estabelecendo pela primeira vez um direito autoral formal que dava aos autores o controle sobre suas obras por um período limitado. Embora apresentado como um incentivo à criatividade e ao progresso das ciências, o estatuto também serviu para reforçar o poder do Estado e das classes dominantes ao regulamentar o acesso ao conhecimento.
Durante o período colonial, os direitos autorais foram utilizados como uma ferramenta de dominação cultural e econômica. As potências coloniais, como o Reino Unido, aplicaram rigorosamente suas leis de direitos autorais nas colônias, garantindo que os colonos dependessem das publicações e conhecimentos importados da metrópole. Esse controle sobre o conhecimento ajudou a manter a subordinação cultural e econômica das colônias, limitando o desenvolvimento de uma produção intelectual local que pudesse desafiar a hegemonia europeia.
No século XX, com a globalização e o avanço tecnológico, os direitos autorais se tornaram um instrumento crucial na proteção de mercados nacionais. Países industrializados, em particular, utilizaram os direitos autorais para proteger suas indústrias culturais e tecnológicas emergentes, impondo barreiras comerciais a países em desenvolvimento. A imposição de regimes de propriedade intelectual rigorosos através de acordos internacionais, como o Acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), consolidou ainda mais o papel dos direitos autorais como um mecanismo de poder geopolítico. Esses acordos frequentemente favorecem as nações desenvolvidas, que possuem os recursos para explorar as proteções legais, enquanto limitam o acesso ao conhecimento e à inovação em países menos desenvolvidos.
Ao longo da história, os direitos autorais têm sido moldados por interesses de poder, refletindo as dinâmicas de controle e dominação tanto no contexto nacional quanto internacional. A análise crítica dessa evolução revela como os direitos autorais, longe de serem um simples incentivo à criatividade, têm servido como uma ferramenta de controle que perpetua desigualdades econômicas e culturais.
Os direitos autorais têm sido historicamente usados por nações poderosas como uma ferramenta de controle geopolítico, consolidando sua influência econômica e cultural sobre o mundo. Essa prática remonta ao colonialismo, quando potências europeias usaram leis de direitos autorais para garantir que as colônias dependessem dos materiais culturais e intelectuais produzidos na metrópole.
No século XX e além, o controle geopolítico através dos direitos autorais se intensificou com a globalização e o crescimento das indústrias criativas e tecnológicas. Nações como os Estados Unidos e os países da União Europeia têm promovido acordos internacionais rigorosos de propriedade intelectual, como o Acordo TRIPS, para proteger seus interesses econômicos e culturais. Esses acordos frequentemente impõem padrões elevados de proteção de direitos autorais a países em desenvolvimento, que, por sua vez, enfrentam desafios para acessar conhecimento e tecnologia vital, ficando em desvantagem na arena global.
A imposição de direitos autorais em nível global também tem permitido a essas nações controlar a narrativa cultural dominante, espalhando suas produções intelectuais e culturais ao redor do mundo, enquanto dificultam o acesso e a disseminação de culturas locais e alternativas. Esse controle cultural fortalece a influência dessas potências, consolidando seu papel como líderes globais tanto no âmbito econômico quanto no cultural.
Além disso, a aplicação extraterritorial das leis de direitos autorais, onde nações poderosas pressionam outros países a reforçarem a proteção de propriedade intelectual conforme seus próprios padrões, serve como um instrumento de poder. Através de sanções econômicas ou da inclusão de cláusulas de propriedade intelectual em tratados de comércio, essas nações asseguram que seus interesses sejam protegidos, mesmo fora de suas fronteiras.
Essa estratégia geopolítica baseada em direitos autorais não apenas perpetua a desigualdade entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento, mas também restringe a liberdade de acesso ao conhecimento global, mantendo o poder concentrado nas mãos de poucos países que dominam as indústrias criativas, tecnológicas e culturais. Assim, o uso de direitos autorais como ferramenta de controle geopolítico é uma das maneiras pelas quais as nações poderosas mantêm e expandem sua influência global, garantindo que seus interesses econômicos e culturais prevaleçam no cenário internacional.
4 "O Paradoxo da Pirataria: Estímulo Tecnológico e Controle Hegemônico
A pirataria, no contexto histórico e contemporâneo, pode ser conceituada como a prática de copiar, distribuir ou utilizar produtos e informações sem a devida autorização dos detentores dos direitos legais. Originalmente associada à prática de saque marítimo, o termo evoluiu para descrever atividades de violação de propriedade intelectual, abrangendo desde a cópia não autorizada de livros e obras de arte até a reprodução e distribuição de software, música, filmes e outras formas de mídia digital. Na economia digital, a pirataria é frequentemente vista como uma resposta às desigualdades de acesso e aos altos custos de produtos protegidos por direitos autorais, desempenhando um papel paradoxal ao simultaneamente desafiar e estimular a inovação tecnológica. Enquanto muitos críticos a veem como uma ameaça à propriedade intelectual e ao incentivo à inovação, outros argumentam que a pirataria pode servir como um mecanismo de redistribuição de conhecimento, especialmente em contextos onde as barreiras econômicas e legais limitam o acesso a recursos essenciais (Aguiar, 2019; Kolev & Bradley, 2019).
A pirataria tem sido uma presença constante na história humana, frequentemente desempenhando um papel crucial na disseminação de conhecimento e na aceleração do desenvolvimento tecnológico e cultural. Desde a Antiguidade, a pirataria se manifestou não apenas como uma atividade ilícita, mas como um meio de redistribuição de bens, ideias e tecnologia. No período medieval, por exemplo, a reprodução não autorizada de manuscritos religiosos e científicos permitiu que o conhecimento circulasse entre diferentes culturas e regiões, muitas vezes à revelia das autoridades religiosas e políticas que desejavam controlar esse fluxo.
No Renascimento, a pirataria foi instrumental na disseminação de ideias revolucionárias que desafiaram o status quo. Impressores pirateavam obras de autores como Maquiavel e Galileu, garantindo que seus escritos chegassem a um público mais amplo, desafiando as tentativas de censura pelas autoridades eclesiásticas e monárquicas. Esse período ilustra como a pirataria pode atuar como um mecanismo de resistência contra o controle autoritário do conhecimento.
No contexto da Revolução Industrial, a pirataria tecnológica foi fundamental para o crescimento econômico e industrial de várias nações, especialmente dos Estados Unidos. No início do século XIX, os EUA adotaram uma abordagem pragmática ao ignorar patentes estrangeiras e copiar tecnologias europeias, o que permitiu sua rápida industrialização. Samuel Slater, conhecido como o "Pai da Revolução Industrial Americana", contrabandeou ilegalmente conhecimentos de máquinas têxteis britânicas para os EUA, estabelecendo a base para a indústria têxtil americana. Eli Whitney, por sua vez, desenvolveu o tear de algodão com base em inovações britânicas, contribuindo significativamente para a expansão da indústria têxtil nos EUA. Outro exemplo é Charles Goodyear, que aprimorou o processo de vulcanização da borracha usando métodos europeus, ignorando patentes internacionais.
Esses casos ilustram como os EUA, ao se apropriarem de tecnologias estrangeiras, impulsionaram seu desenvolvimento industrial, desconsiderando as normas de propriedade intelectual que agora defendem com rigor. Essa prática histórica de apropriação contrasta fortemente com a postura atual dos EUA, que utilizam a defesa da propriedade intelectual como uma ferramenta para preservar sua hegemonia econômica e limitar o crescimento de outras nações. Ao impor estritas normas de propriedade intelectual, os EUA dificultam o acesso de países em desenvolvimento às mesmas oportunidades tecnológicas que outrora alavancaram seu próprio progresso. Essa contradição revela uma estratégia de manutenção do poder global, onde a propriedade intelectual é menos sobre a proteção da inovação e mais sobre a perpetuação das desigualdades econômicas e tecnológicas entre as nações.
No século XX, a pirataria continuou a desempenhar um papel significativo, especialmente na disseminação de software e tecnologia digital. A cópia e distribuição não autorizada de programas de computador, por exemplo, permitiram que usuários em países em desenvolvimento tivessem acesso a ferramentas tecnológicas que, de outra forma, estariam fora de alcance devido a custos elevados. Essa prática não só democratizou o acesso à tecnologia, mas também incentivou a inovação, com desenvolvedores locais modificando e aprimorando os softwares pirateados para atender às necessidades regionais.
Hoje, a pirataria continua sendo uma força de impacto, especialmente na era digital. Embora seja frequentemente retratada negativamente, a pirataria desafia as noções tradicionais de propriedade intelectual e levanta questões importantes sobre o acesso ao conhecimento, a justiça social e a inovação. A história da pirataria revela que, longe de ser uma mera atividade criminosa, ela tem sido um fator chave na circulação de ideias e na promoção do desenvolvimento cultural e tecnológico ao longo dos séculos.
5 A Pirataria e o Direito ao Conhecimento: Equidade em Contextos de Desigualdade
A pirataria, embora muitas vezes condenada como uma atividade criminosa, tem impactos econômicos e sociais complexos, especialmente em países em desenvolvimento. Em muitos casos, a pirataria permite o acesso a tecnologias, conhecimentos e recursos educacionais que, de outra forma, estariam fora do alcance de grande parte da população devido a altos custos ou restrições legais. Isso pode ser particularmente importante em contextos onde o acesso ao conhecimento é limitado, permitindo que indivíduos e pequenas empresas utilizem ferramentas modernas para melhorar suas condições de vida e promover o crescimento econômico local.
Em países em desenvolvimento, onde os custos de licenciamento de software e outras tecnologias são proibitivos, a pirataria desempenha um papel crucial. Ela permite que empresas locais e startups acessem ferramentas tecnológicas que são essenciais para aumentar a produtividade e a competitividade no mercado global. Por exemplo, o uso de software pirata tem sido identificado como um fator que permite que as empresas nesses países desenvolvam capacidades tecnológicas que, de outra forma, seriam inacessíveis, contribuindo para a criação de empregos e a participação mais ativa na economia global.
No campo da educação, a pirataria de livros e artigos acadêmicos é vital para estudantes e professores em regiões onde os recursos são escassos. O acesso a esses materiais permite que os estudantes ampliem seus conhecimentos e habilidades, o que melhora a qualidade da educação e prepara uma força de trabalho mais qualificada. Isso não apenas beneficia os indivíduos, mas também contribui para o desenvolvimento econômico e social das comunidades, criando um ciclo virtuoso de crescimento e inovação.
Além disso, a pirataria tecnológica tem sido crucial na disseminação de cultura e inovação. Em muitas regiões, o compartilhamento informal de filmes, música e software cria um mercado paralelo que promove a diversidade cultural e facilita a adaptação de tecnologias a contextos locais. Em alguns casos, isso resulta no desenvolvimento de indústrias criativas locais que reinterpretam e adaptam conteúdos estrangeiros, contribuindo para a sustentabilidade econômica e cultural.
Embora a pirataria seja ilegal, seu impacto positivo em determinados contextos levanta questões importantes sobre a equidade no acesso ao conhecimento e à tecnologia. O sistema global de propriedade intelectual, muitas vezes, reforça as desigualdades existentes, protegendo os interesses dos países desenvolvidos enquanto limita o acesso de nações em desenvolvimento. Assim, a pirataria pode ser vista como uma forma de resistência contra essas desigualdades, proporcionando uma oportunidade para que comunidades excluídas acessem os recursos necessários para seu desenvolvimento.
6 O Mito da Originalidade: A Criação como Processo Coletivo e Intertextual
A ideia de originalidade, tradicionalmente valorizada como o cerne da criação intelectual, tem sido cada vez mais questionada, especialmente à luz das dinâmicas de produção e disseminação de conhecimento na era moderna. Originalidade, conforme definida em muitos sistemas de propriedade intelectual, sugere a criação de algo totalmente novo e sem precedentes. No entanto, essa noção é essencialmente uma construção idealizada que não reflete a realidade da produção de conhecimento e arte.
No contexto do conhecimento, toda criação é, na verdade, uma construção sobre obras anteriores. Desde as primeiras manifestações culturais e científicas, o progresso humano tem sido marcado pela adaptação, aprimoramento e combinação de ideias já existentes. Isso se aplica tanto às artes quanto às ciências. Por exemplo, os avanços científicos frequentemente dependem da construção sobre descobertas anteriores, e na literatura e nas artes, novos estilos e movimentos emergem como respostas ou evoluções de estilos anteriores. Mesmo as obras que parecem radicalmente inovadoras frequentemente contêm elementos ou influências de trabalhos anteriores.
O conceito de intertextualidade, introduzido por teóricos literários, reforça essa ideia ao sugerir que todos os textos são, de certa forma, interligados. Cada obra de arte ou produção intelectual está em diálogo com outras obras, seja por referência direta, estilo ou até mesmo por contraste. A intertextualidade aponta para a inevitabilidade das influências culturais e históricas no processo criativo, sublinhando que o conceito de "originalidade absoluta" é, na verdade, um mito. Por exemplo, movimentos artísticos como o Renascimento e o Modernismo são construídos sobre a base de tradições anteriores, reinterpretando e recontextualizando antigos conceitos e formas.
Em muitos campos criativos, a apropriação de ideias e obras é uma prática comum e até celebrada. A música, o cinema, a literatura e as artes visuais frequentemente utilizam elementos de obras anteriores, remixando, reinterpretando ou subvertendo-os para criar algo que é ao mesmo tempo familiar e novo. Artistas contemporâneos, como aqueles no movimento da arte pop, fizeram da apropriação uma parte central de suas práticas, demonstrando que a criatividade muitas vezes reside na maneira como as ideias são combinadas e transformadas, e não na criação de algo completamente novo.
Essa desconstrução da originalidade tem implicações profundas para o sistema de propriedade intelectual. Se aceitamos que toda criação é, em última análise, derivativa, as rígidas proteções oferecidas pelas leis de direitos autorais e patentes podem ser vistas como limitadoras, restringindo a circulação de ideias e o progresso cultural. O reconhecimento de que a originalidade absoluta é uma ilusão sugere que um sistema de propriedade intelectual mais flexível e adaptável pode ser mais adequado para fomentar a inovação e o compartilhamento de conhecimento, permitindo que as ideias fluam livremente e se desenvolvam coletivamente.
Além disso, a noção de que o conhecimento e a criatividade são coletivos e construídos em comunidade desafia a visão individualista da criação. Muitas das maiores inovações e obras de arte surgiram de colaborações e trocas de ideias dentro de comunidades criativas e intelectuais. Reconhecer essa realidade subverte a ideia do "gênio solitário" e sugere que a criação é, na verdade, um processo social, onde a influência mútua e a construção colaborativa são fundamentais.
A originalidade, tal como tradicionalmente entendida, é um conceito que necessita ser reconsiderado. Ao perceber que toda criação se baseia em influências anteriores, podemos adotar uma visão mais inclusiva e realista da criatividade, que reconhece a importância da colaboração e da continuidade cultural no desenvolvimento do conhecimento. Essa mudança de perspectiva não só enriquece nossa compreensão do processo criativo, mas também oferece caminhos mais justos e eficazes para a proteção e disseminação do conhecimento na sociedade.
A história oferece numerosos exemplos em que a pirataria e a imitação desempenharam papéis cruciais no avanço de indústrias e na promoção da inovação, desafiando a narrativa tradicional de que o progresso depende da proteção estrita da propriedade intelectual.
Nos Estados Unidos, durante o início do século XIX, a cópia de tecnologias britânicas foi fundamental para a industrialização do país. Samuel Slater, que trouxe clandestinamente os projetos de máquinas têxteis da Inglaterra, estabeleceu as bases da indústria têxtil americana, sem se preocupar com patentes ou direitos autorais. Da mesma forma, Eli Whitney e outros inventores americanos adaptaram e aperfeiçoaram tecnologias europeias, contribuindo para a rápida industrialização dos EUA. Esse processo de imitação e adaptação permitiu que os Estados Unidos se tornassem uma potência industrial em poucas décadas.
No final do século XIX, durante a Revolução Meiji, o Japão se envolveu amplamente na imitação de tecnologias e práticas industriais ocidentais. O governo japonês incentivou a cópia e o aprendizado de técnicas ocidentais, enviando engenheiros e estudantes ao exterior para adquirir conhecimentos que poderiam ser trazidos de volta ao Japão. Esse processo de imitação e adaptação foi essencial para a rápida modernização do país, transformando-o em uma potência industrial e militar em poucas décadas.
Na segunda metade do século XX, a Coreia do Sul seguiu uma estratégia semelhante, inicialmente imitando produtos eletrônicos de empresas japonesas e ocidentais. Empresas como Samsung e LG começaram produzindo cópias de produtos existentes, mas ao longo do tempo, essas empresas investiram em pesquisa e desenvolvimento para inovar e melhorar esses produtos. Hoje, a Coreia do Sul é líder mundial em tecnologia eletrônica, com empresas que competem diretamente com as principais marcas globais.
Na Índia, a produção de medicamentos genéricos, muitas vezes criticada como "pirataria" pelos detentores de patentes, desempenhou um papel vital no fornecimento de medicamentos acessíveis a milhões de pessoas em todo o mundo. A Índia desafiou as leis de patentes internacionais ao produzir versões genéricas de medicamentos patenteados, o que não apenas salvou vidas, mas também pressionou empresas farmacêuticas globais a reavaliar seus modelos de preços e a investir em inovação para criar novos medicamentos.
Mais recentemente, a China tem sido acusada de copiar tecnologias automotivas de fabricantes ocidentais e japoneses. No entanto, essa prática de imitação permitiu que a China desenvolvesse rapidamente sua própria indústria automotiva, que agora está começando a inovar e a produzir veículos elétricos que competem globalmente. A rápida evolução da indústria automotiva chinesa exemplifica como a imitação inicial pode ser um trampolim para a inovação.
Esses exemplos históricos demonstram que a imitação e a pirataria, longe de serem meros atalhos ou comportamentos antiéticos, podem ser motores poderosos de desenvolvimento econômico e inovação. Ao desafiar a narrativa de que o progresso é dependente da proteção rigorosa da propriedade intelectual, esses casos sugerem que a flexibilidade e o acesso ao conhecimento são essenciais para o avanço global. A história revela que a inovação muitas vezes floresce em contextos onde as ideias são compartilhadas e adaptadas, e não exclusivamente protegidas.
7.Direitos Autorais e Soberania: O Brasil na Encruzilhada da Globalização
O sistema de direitos autorais no Brasil, apesar de ser criado para proteger a propriedade intelectual, enfrenta desafios substanciais devido às pressões externas e aos interesses econômicos internacionais. A globalização e acordos comerciais como o Acordo TRIPS da OMC muitas vezes forçam o Brasil a adotar normas que beneficiam as nações desenvolvidas, dificultando a criação de um marco legal que atenda às necessidades locais. Essas pressões são intensificadas por lobbies de grandes corporações multinacionais, especialmente nos setores de tecnologia e entretenimento, que influenciam a legislação brasileira para proteger seus próprios interesses, em detrimento da inovação e do compartilhamento de conhecimento.
Em contraponto, há um movimento crescente no Brasil que busca maior autonomia na formulação de políticas de direitos autorais, visando equilibrar a proteção da propriedade intelectual com o acesso ao conhecimento. Políticas públicas que promovem a flexibilidade nas leis, como o fortalecimento do domínio público e o uso de licenças abertas, são vistas como caminhos para atingir esse equilíbrio. No entanto, essa busca por um marco legal mais autônomo enfrenta a resistência de lobbies poderosos, que investem em campanhas para manter a legislação alinhada aos padrões internacionais mais rígidos, limitando a capacidade do Brasil de adaptar suas políticas às realidades locais.
Atualmente, a Lei de Direitos Autorais no Brasil é regida pela Lei Nº 9.610 de 1998, que protege as obras durante a vida do autor e por 70 anos após sua morte, abrangendo obras literárias, musicais e artísticas. Contudo, o Brasil tem debatido a atualização dessa legislação para enfrentar desafios modernos, como o uso de inteligência artificial (IA) e a distribuição digital de conteúdo. Uma proposta em andamento, identificada como Projeto de Lei nº 2630/2020, visa modernizar o marco legal, abordando o uso de obras protegidas para o treinamento de IA e a distribuição digital não autorizada de conteúdo. A proposta também fortalece os direitos morais dos autores e as licenças coletivas, buscando assegurar remuneração justa e a integridade das obras.
Os partidos de esquerda e progressistas no Brasil, como o PT, PSB e PDT, têm tradicionalmente adotado posturas que visam proteger a cultura nacional e os direitos autorais. Essas ações buscam garantir que os criadores sejam devidamente remunerados e que a cultura brasileira, conhecimentos tradicionais e o patrimônio biológico e genético não sejam explorados indevidamente por grandes corporações, especialmente estrangeiras. Esse enfoque é uma resposta à globalização e à influência das grandes economias, que podem facilmente dominar mercados menores sem a devida regulamentação e proteção dos direitos autorais.
No entanto, a eficácia dessas medidas é limitada pela posição do Brasil no cenário global. Apesar dos esforços para proteger a cultura e o patrimônio biológico do país, as economias centrais, como os Estados Unidos, frequentemente utilizam seu poder econômico e político para impor suas demandas, muitas vezes em detrimento dos interesses de países como o Brasil. Isso pode ser observado na dificuldade que o Brasil enfrenta ao tentar proteger suas tecnologias e inovações industriais, como o caso da tecnologia de exploração em águas profundas desenvolvida pela Petrobras, que acabou sendo apropriada por empresas estrangeiras após o desmonte da estatal.
A Petrobras, ao longo das décadas, se destacou como uma das principais empresas de exploração e produção de petróleo em águas profundas. A companhia desenvolveu tecnologias avançadas que permitiram a exploração de reservas de petróleo em áreas de difícil acesso, como o pré-sal. Essas inovações colocaram o Brasil na vanguarda da exploração petrolífera global.
Após a operação Lava Jato e o consequente enfraquecimento da Petrobras, a empresa sofreu um processo de desmonte que incluiu privatizações e a venda de ativos estratégicos. Nesse contexto, empresas estrangeiras, como a ExxonMobil, conseguiram acesso a essas tecnologias. A ExxonMobil, por exemplo, utilizou a expertise adquirida para explorar reservas no Canadá, aproveitando-se da vulnerabilidade da Petrobras durante o período de crise.
A Embraer, uma das maiores fabricantes de aeronaves do mundo, também foi vítima de um processo similar. A empresa, que se consolidou como líder no mercado de jatos regionais, desenvolveu tecnologias e expertise que a colocaram em posição de destaque global.
Durante o governo de Michel Temer, houve uma tentativa de fusão entre a Embraer e a Boeing, patrocinada pelo governo brasileiro. Embora essa fusão tenha sido apresentada como uma oportunidade de fortalecimento da Embraer, ela gerou controvérsias e preocupações sobre a perda de controle estratégico da empresa. Antes disso, a Bombardier, uma concorrente direta da Embraer, conseguiu se apropriar de parte da tecnologia desenvolvida pela empresa brasileira. Isso ocorreu quando a Bombardier enfrentava dificuldades financeiras e buscava um parceiro estratégico para se manter competitiva no mercado. A aquisição de tecnologias da Embraer permitiu à Bombardier fortalecer sua posição no mercado global, em detrimento da empresa brasileira.
Adicionalmente, esses partidos progressistas têm sido menos proativos na questão da desregulação das patentes industriais. A desregulação das patentes é crucial para promover a inovação e o desenvolvimento econômico, especialmente em setores como o farmacêutico, onde a quebra de patentes pode permitir a produção de medicamentos genéricos a preços acessíveis. Embora tenham havido esforços tímidos durante o governo FHC, especialmente com a introdução dos medicamentos genéricos sob a liderança de José Serra, o tema não tem sido prioritário na agenda dos partidos de esquerda. Isso contrasta com a proteção dos direitos autorais e a regulamentação das plataformas digitais, que recebem muito mais atenção. Essa ausência de foco na flexibilização das patentes constitui uma séria limitação estratégica, considerando a rápida evolução tecnológica e a necessidade crescente de acesso a tecnologias essenciais. Em um mundo onde pandemias e crises globais podem surgir rapidamente, o equilíbrio entre proteger a propriedade intelectual e garantir o acesso justo e universal às inovações torna-se cada vez mais vital.
8.CONSIDERAÇÕES FINAIS
O sistema de direitos autorais e de propriedade intelectual no Brasil, e em nível global, tem mostrado ser um instrumento complexo, com impactos que vão além de sua função inicial de incentivar a inovação e proteger os criadores. Embora tenha como objetivo primário promover o progresso científico e cultural, muitas vezes, esse sistema serve para perpetuar desigualdades econômicas e tecnológicas, favorecendo nações desenvolvidas e grandes corporações em detrimento de países em desenvolvimento e de criadores individuais.
No Brasil, a legislação de direitos autorais reflete tanto a necessidade de proteger a cultura e o patrimônio nacional quanto a pressão para se alinhar a padrões internacionais estabelecidos por potências econômicas. No entanto, essa adaptação frequentemente ocorre à custa da soberania nacional e do acesso equitativo ao conhecimento. A experiência brasileira com tecnologias críticas, como as desenvolvidas pela Petrobras e pela Embraer, demonstra a dificuldade do país em proteger suas inovações em um cenário global dominado por interesses externos. A apropriação dessas tecnologias por empresas estrangeiras após momentos de vulnerabilidade econômica e política ilustra as limitações do sistema atual em proteger efetivamente os interesses nacionais.
Além disso, enquanto os direitos autorais recebem atenção significativa na legislação brasileira, a questão da desregulação das patentes, especialmente em setores como o farmacêutico, permanece subexplorada. A proteção excessiva dos direitos de propriedade intelectual pode, paradoxalmente, sufocar a inovação e limitar o desenvolvimento tecnológico em áreas cruciais, como a saúde pública. A ausência de políticas robustas para a quebra de patentes industriais em favor do desenvolvimento tecnológico local é uma lacuna estratégica que precisa ser endereçada.
No futuro, o sistema de direitos autorais e de propriedade intelectual no Brasil e no mundo precisará passar por uma reavaliação profunda para se adaptar às novas realidades tecnológicas e sociais. Com a crescente interconectividade global e o avanço das tecnologias digitais, como a inteligência artificial, será necessário encontrar um equilíbrio que continue incentivando a criatividade e a inovação, ao mesmo tempo em que promove o acesso equitativo ao conhecimento. Modelos mais flexíveis e inclusivos, como as licenças de código aberto e Creative Commons, podem servir como exemplos de como essas mudanças podem ser implementadas de maneira a beneficiar tanto os criadores quanto o público em geral.
A reforma do sistema global de propriedade intelectual deve ser orientada não apenas pela proteção de direitos, mas também pela promoção do desenvolvimento humano e pela democratização do acesso ao conhecimento. Apenas assim será possível garantir que a propriedade intelectual cumpra seu verdadeiro papel de promover o progresso social e econômico em um mundo cada vez mais interdependente.
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Possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2005) e graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (1999). Graduando em Engenharia Florestal pela Universidade Federal do Acre (2021). Graduando em Engenharia Civil pela Universidade Salvador (2021). Mestrando em Educação pela Universidade Federal do Acre (2023).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: POLO, Tomas Guillermo. Propriedade intelectual: uma ferramenta de controle ou de progresso? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 out 2024, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /66754/propriedade-intelectual-uma-ferramenta-de-controle-ou-de-progresso. Acesso em: 28 dez 2024.
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